Conhecidas pela pequena produção e qualidade excepcional, as cervejas trapistas são produzidas por monges há séculos.
Mas foi só no início da década de 1930 que algumas delas começaram a ser produzidas como conhecemos hoje e distribuídas em escala comercial – criando fãs da cerveja trapista em todos os cantos do globo.
Mas o que se entende por cerveja trapista?
Onde elas são produzidas?
Será que o Brasil pode ter uma cerveja trapista para chamar de sua?
Conheça agora a história e as regras de produção que fazem da cerveja trapista uma das melhores obras-primas da arte cervejeira mundial.
O que é uma Cerveja Trapista: significado e etimologia
A cerveja trapista é uma cerveja fabricada por monges trapistas ou sob a sua supervisão direta.
O termo trapista refere-se aos monges afiliados à Ordem Cisterciense da Estrita Observância e a história da cerveja trapista se confunde com a própria história da Ordem.
O ano era 1664. O monge Armand-Jean le Bouthillier de Rancè, que vivia no convento de Notre-Dame de la Trappe, na França, considerava demasiado liberal o comportamento dos seus colegas cistercienses.
Por essa razão, Armand decidiu restabelecer as observâncias religiosas tradicionais mais rigorosas, como a abstinência, o claustro, o silêncio e as vigílias, o que acabou criando uma subdivisão da Ordem Cisterciense, conhecida hoje como a Ordem Cisterciense da Estrita Observância.
Do nome da Abadia de Notre-Dame de la Trappe derivou, então, o termo trapista, que serve tanto para identificar os monges membros da nova Ordem como os produtos produzidos por eles, a exemplo das cervejas trapistas.
Como os monges trapistas foram produzir cerveja?
As cervejarias de mosteiros, de diferentes ordens religiosas, existem em toda a Europa desde a Idade Média.
O mosteiro de La Trappe, por exemplo, já tinha sua própria cervejaria em 1685.
Mas por que os monges produziam cerveja?
Um dos princípios fundamentais da Ordem Cisterciense da Estrita Observância era que cada mosteiro deveria ser auto-suficiente, ou seja, deveria produzir tudo o que consumissem. E, na época, a cerveja era ingerida por uma questão de saúde.
No passado, a água era geralmente de má qualidade, muitas vezes contaminada, e muitas vezes deixava as pessoas doentes. Então os monges tiveram a engenhosa ideia de beber cerveja para evitar contrair infecções.
Além disso, a cerveja também era vista como uma fonte de muitos nutrientes.
Assim, muitos mosteiros incorporaram cervejarias, para o seu próprio consumo, mas também como forma de alimentar a comunidade.
A qualidade da água melhorou muito ao longo dos séculos, mas a fabricação de cerveja permaneceu uma tradição.
Hoje, apenas uma pequena parte do que os monges e monjas produzem em suas abadias é para uso próprio. Falamos das cervejas, mas também de queijos, chocolates, geleias, azeites e muitos outros produtos.
A maior parte do que é produzido pelos trapistas é destinada à venda.
Os religiosos da Ordem usam o lucro para bancar as necessidades dos seus monastérios e qualquer lucro extra é doado a terceiros.
Todo monastério trapista produz cerveja?
Ao contrário do que muitos supõem, nem todo monastério trapista possui uma cervejaria.
Atualmente, dos 158 mosteiros trapistas do mundo listados no site da Ordem, apenas 14 produzem cerveja.
Ainda assim, desses 14 mosteiros, apenas 11 estão autorizados a rotular suas cervejas com o logotipo de produto Authentic Trappist, que indica o cumprimento de um conjunto de regras estabelecidas pela Associação Internacional de Trapistas.
Regulamento Trapista: o que é preciso para uma Cerveja ser considerada Trapista?
Existem 3 requisitos para que uma cervejaria possa produzir rótulos com o título de cerveja trapista.
São eles:
1. A cerveja deve ser fabricada dentro de uma Abadia Trapista;
2. Todo o processo de produção deve ser realizado por monges trapistas ou sob o controle direto da comunidade monástica trapista;
3. A receita das vendas deve ser usada pela Ordem para a subsistência do monastério e para realizar atos de caridade.
Somente com a observância dessas regras, a cerveja pode ostentar o reconhecido selo de “Produto Trapista Autêntico”.
Cervejas Trapistas X Cervejas de Abadia
Uma confusão clássica do mundo da cerveja é confundir cerveja trapista com cerveja de Abadia.
Mas há uma diferença bem clara entre elas: enquanto a cerveja trapista segue regras bem mais restritas e estampam o selo de autenticidade, a cerveja de abadia não é uma designação protegida.
Assim, a cerveja da Abadia é fabricada por uma cervejaria que tem ligação com uma abadia, seja pela localização, pela retomada de receitas monásticas ancestrais ou mesmo por uma licença concedida pelos monges a um cervejeiro, mas não tem relação com os monges trapistas.
Em outras palavras, podemos dizer que as cerveja de Abadia são de propriedade de corporações onde monges podem – mas não devem obrigatoriamente – estar envolvidos em certas partes do processo e as bebidas podem – mas não obrigatoriamente – ser feitas dentro de um mosteiro.
As cervejas de Abadia podem ser produzida por, por exemplo:
- um mosteiro não trapista, como um monastério Cisterciense ou Beneditino;
- uma cervejaria comercial em parceria com um mosteiro existente;
- uma cervejeira comercial, marcado com o nome de uma abadia extinta ou fictícia.
Assim, existem muitas cervejas de Abadia fabricadas por monges, mas isso nem sempre acontece. E mesmo quando são, nem todas atendem aos critérios para receber a etiqueta ‘Trapista’.
Um exemplo é a cerveja Leffe, produzida na Bélgica.
O rótulo da Leffe apresenta com destaque uma imagem da Abadia de Leffe, que não produz cerveja desde 1809.
De fato, a Leffe – que é de propriedade da maior marca de cerveja do mundo, a AB InBev – é produzida em uma fábrica de cerveja em Leuven, que também é usada para produção de grandes marcas, como a Stella Artois.
De todo o modo, a cervejaria mantém ainda hoje estreita relação com os monges premonstratenses, a produção das cervejas Leffe segue a receita tradicional da Abadia e a Ordem recebe royalties pelas vendas da cerveja.
Selo de Autenticidade Trapista
No século XX, a crescente popularidade das cervejas trapistas levou alguns cervejeiros sem nenhuma conexão com a Ordem Monástica a rotulá-las de “trapistas”.
Isso levou à fundação da Associação Trapista Internacional, em 1998, e a criação do selo hexagonal que hoje identifica os autênticos produtos trapistas.
A presença do selo indica, portanto, a origem dos produtos e a presença de uma série de especificações para a sua fabricação, impedindo que o nome Trappist® seja usado indevidamente.
Lembrando que aqui entram não apenas as cervejas trapistas, mas produtos de vinte monastérios trapistas associados em todo o mundo que produzem também queijos, geleias, vinhos, azeites, etc.
Todos os produtos feitos por essas abadias podem ser chamados de trapistas.
As Abadias que carregam o selo de Autêntica Cerveja Trapista
Muita gente acredita que as cervejas trapistas são produzidas apenas na Bélgica.
Apesar de maioria estar mesmo localizada no país, existem atualmente 14 cervejarias trapistas no mundo, espalhadas em 2 continentes e 8 países diferentes.
Dentre as 14, apenas 11 são legitimamente aprovadas pela ITA para utilizarem o selo Authentic Trappist Product no momento.
Confira a lista das Cervejarias Trapistas certificadas de acordo com o país de origem:
BÉLGICA
- Chimay: a produção acontece na Abadia de Scourmont.
- Rochefort: os rótulos são produzidos pela Abadia de Nossa Senhora de Saint-Remy em Rochefort.
- Westmalle: cervejaria da Abadia de Nossa Senhora do Sagrado Coração.
- Westvleteren: cervejas produzidas pela Abadia de Sint-Sixtus, em Westvleteren.
- Orval: a produção acontece na Abadia de Orval.
HOLANDA
- Zundert – a Zundert Trappist® é produzida na cervejaria da Abadia Maria Toevlucht.
- La Trappe: cervejas produzidas na Koningshoeven Abbey.
ÁUSTRIA
- Engelszell – cerveja trapista produzida pela Engelszell Abbey.
ESTADOS UNIDOS
- Spencer – a única cervejaria trapista fora da Europa fica na Abadia de São José, em Massachusetts.
INGLATERRA
- Mount St. Bernard – cerveja trapista da Abadia de Mount Saint Bernard.
ITÁLIA
Tre Fontane – fabricadas dentro das paredes da Abadia de Tre Fontane, em Roma.
Depois ainda temos os monges franceses de Mont des Cats e os espanhóis de Cardeña, que apesar de fazerem parte da Associação Internacional dos Trapistas, produzem cerveja fora das suas Abadias e, portanto, não podem aplicar o logotipo hexagonal na garrafa.
A Belga Achel também não sustenta mais o selo desde a saída do último monge da Abadia de Limburg, em 2021.
Cerveja Trapista Brasileira
Já pensou se o Brasil tivesse a sua própria cerveja trapista?
Sim! Isso é possível, já que existem dois Monastérios da Ordem Cistercienses da Estrita Observância no Brasil:
- Mosteiro Nossa Senhora do Novo Mundo;
- Mosteiro Nossa Senhora da Boa Vista.
O primeiro está localizado em Campo Tenente, no Paraná, e o segundo, em Rio Negrinho, Santa Catarina.
Apesar de produzirem bolos, biscoitos, geleias e chocolates, os dois monastérios ainda não produzem cerveja.
Mas essa história pode mudar.
As monjas da Ordem Trapista de Rio Negrinho já sinalizaram a intenção de montar uma cervejaria e fabricar cerveja em pequena escala para ajudar a sustentar o mosteiro onde vivem.
Ao saber da iniciativa, a Escola Superior de Cerveja e Malte subsidiou cursos e equipamentos para as monjas adquirirem conhecimento técnico e começarem os primeiros experimentos nas panelas.
Para chegar ao objetivos, as monjas estão caminhando aos poucos, estudando e buscando conhecimento.
Caso consigam realizar o desejo de montar uma pequena fábrica, tendo o produto comercializado pelo convento local, as irmãs se tornarão as primeiras monjas trapistas a produzir cerveja no Brasil.
Estamos na torcida!
Cervejas Trapistas: os estilos mais comuns feitos nos Mosteiros
As cervejas trapistas não estão ligadas a nenhum estilo categórico de cerveja.
Trata-se, ademais, de um especificidade de produção e não de um perfil sensorial único.
No entanto, há traços produtivo-sensoriais recorrentes; e há algumas categorias de classificação tipológica em que é legítimo enquadrar muitos rótulos trapistas.
Falamos de estilos como Dubbel, Tripel e Quadrupel.
As Dubbels, cujos exemplares mais conhecidos são a Westmalle Dubbel, Westvleteren 8 e a Rochefort 6 são de cor âmbar profundo, tendendo ao marrom, com notas de frutas secas. Possuem graduação alcoólica entre 6 e 7,6%.
Entre as Tripel estão a Westmalle Tripel e a Chimay de rótulo branco. Essas cervejas são douradas e ainda mais alcoólicas, com ABV entre 7,5 a 9,5%. Os aromas são frutados, com notas de especiarias.
Já o estilo Quadruppel vem representado pela Rochefort 10 e a Westvleteren 12. Aqui o teor alcoólico sobe para o intervalo entre 8 e 12%. Os sabores são concentrados em notas de caramelo e alcaçuz, biscoito e bolo assado, frutos secos e desidratados.
Descubra qual o copo ideal para servir uma cerveja trapista.
Curiosidade: quanto custa uma cerveja trapista?
Graças à “marca” trapista, as garrafas são vendidas por mais que o dobro do preço das marcas industriais.
Isso na Europa.
Os preços das cervejas trapistas no Brasil podem ser ainda mais salgados.
Culpa dos impostos, do frete e da diferença cambial, claro.
Façamos um comparativo.
Enquanto uma Rochefort 6, 330ml, custa no Brasil R$35 em uma loja virtual, essa mesma cerveja é vendida na França a €2,17 ou R$11, na cotação atual.
Já a caixa com 24 cervejas da Westvleteren 12 – a famosa cerveja sem rótulo que só pode ser comprada por particulares diretamente na Abadia – sai por €48,80, ou seja, cerca de 2 euros cada. São cerca de R$10 por Westvleteren 12, quando adquirida na Bélgica.
No Brasil, um único exemplar da cerveja é revendido no mercado paralelo por R$289,00.
Tamanha diferença de preço tem mais uma boa explicação: produzida apenas 5.000 hectolitros por ano, esta cerveja é uma mercadoria rara.
Diante da baixa produção e da grande quantidade de pessoas interessadas em comprar a cerveja, é preciso entrar em uma lista de espera. Demora-se meses até que se possa adquirir uma Westvleteren 12 no balcão da Abadia de Saint-Sixtus.
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